Da
segunda metade dos anos 60 até o final da década de 70 do século passado, os
políticos que disputavam eleições na Capela eram sempre os mesmos. Era raro
aparecer um nome novo para a disputa eleitoral. Quando acontecia, era alguém
tutelado por algum coronel ou cacique local.
Geralmente
o eleitor só conhecia pessoalmente os políticos locais. Via de regra, só se
conhecia os candidatos a deputado federal e senador, através dos santinhos. A
campanha destes nos municípios era feita por seus cabos eleitorais. Quando
eleito, eles iam para Brasília no início do mandato e só voltavam para o estado
quando perdiam o mandato ou quando morriam.
No
início dos anos 70 vivíamos no Brasil a chegada da Contracultura. Era um
movimento mundial que visava quebrar tabus e confrontar os padrões culturais
que dominavam a sociedade naqueles tempos. Eram, geralmente jovens,
descontentes com as regras estabelecidas por seus pais e pela ordem mundial
vigente. É do ventre da Contracultura que nasce o movimento hippie, possivelmente,
o seu mais representativo rebento. Jovens cabeludos, tendo como arma a
rebeldia, ganharam as ruas, corações e mentes no mundo inteiro, empunhando
bandeiras como o feminismo, o amor livre e a cultura da paz.
Essa
onda influenciaria toda uma geração de jovens que, mesmo com muita alienação, incorporaria
os símbolos daquele movimento. Cabelos compridos, dedos em V clamando por paz
& amor, eles vestiam batas e pantalonas como farda e tinham o rock and roll
como hino. Era a estética da flor e do amor.
Numa
sociedade conservadora como a da Capela, no começo, poucos tinham coragem de
aderir aquela nova onda. A exceção de alguns poucos jovens corajosos -
revolucionários até – como Zé Euclides de Modeba, Malaquias de Seo Misael, mais
um ou outro destemido, os demais adorariam, mas morriam de medo dos pais e da língua
do povo caso deixassem o cabelo crescer, vestissem aquelas roupas coloridas, usassem
pulseiras no punho, medalhão no pescoço e brinco na orelha.
-
Filho meu não usa essas coisas – sentenciavam pais e mães assustados com o
novo. Quem ousasse enfrentá-los correria o risco de ser deserdado e desterrado.
Somente a partir dos meados dos anos 70, os conservadores arrefeceram e quase todo
mundo aderiu àquela moda.
Foi
nessas circunstâncias que em 1972 apareceu na Capela um rapaz chamado Possidônio.
Vindo de São Paulo ele chegara à cidade em companhia do capelense Zé de Helena,
que fora seu colega de trabalho numa produtora de eventos na capital
bandeirante. Ninguém sabia nada sobre a vida pregressa de Possidônio, nem mesmo
seu amigo Zé de Helena, mas ele caiu nas graças da grande maioria dos
capelenses. Simpático, bom de papo, parecia um daqueles artistas que a TV
mostrava.
Possidônio
dominava vários ofícios. Era fotógrafo: fazia fotos de casamentos, batizados,
eventos sociais e 3x4 para documentos. Projecionista no Cine Capela, tocava
órgão na missa da Igreja da Matriz, fazia o cerimonial das festas de formatura
e, nas horas vagas, vendia calça Lee. Era a calça dos hippies. Lee, uma marca
de jeans fabricado nos Estados Unidos, era vendido no Brasil por meio de
contrabando. As leis da ditadura proibiam exportação. Calça Lee virou febre e
sonho de consumo na Capela, no Brasil e no mundo. Ninguém sabia como Possidônio
fazia para obtê-las, mas seus clientes não se importavam com isso, o importante
era estar na moda. Um determinado dia, o locutor que anunciava as atrações do
circo de Pinga Fogo caiu doente e faltou ao trabalho. Chamaram Possidônio para
fazer o serviço. Ele fez bem feito e acrescentou mais essa atividade em seu
currículo. Em outras palavras, Possidônio se deu muito bem na Capela e era
adorado por quase todos, ao contrário de Zé de Helena que não conseguindo
trabalho em sua cidade voltou para São Paulo.
- A
Capela é ótima madrasta, mas é uma péssima mãe – declarou um ressentido Zé de
Helena ao embarcar de volta para o sul.
Havia
também os que odiavam Possidônio. Especialmente os rapazes do Básico. Eram
estudantes da Escola Técnica de Comércio Sagrado Coração de Jesus, que não
aceitavam o sucesso de Possidônio com as moças e o chamavam, pejorativamente, de
O Estrangeiro. Realmente as meninas não resistiam ao charme d’O Estrangeiro que
era um Dom Juan e namorou quase todas elas. A gota d’água foi quando ele
apareceu de mãos dadas e trocando “selinhos” com Débora no saguão do Cine
Capela, antes da sessão de Love Story. Débora era colega, musa e a paixão
platônica dos Rapazes do Básico. Nunca fora vista namorando ninguém, o que alimentava
a esperança daqueles jovens. Aquelas cenas da paixão entre Débora e Possidônio
no cinema marcaram o coração daquela geração de adolescentes como o ferro marca
o couro do gado.
1972
era um ano de eleições para prefeito e vereadores. Possidônio morava na Rua das
Pedras onde era vizinho, parede de meia, do fazendeiro Maneca Monteiro. À
noite, depois do jantar, costumavam bater longos papos na calçada. Seo Maneca, sentado
numa cadeira de balanço, Possidônio, derreado numa preguiçosa, passavam em
revista suas aventuras e desventuras de cada dia. Foi observando o quanto Maneca,
apesar de rude, era um homem sábio, hábil nos negócios, autêntico e benquisto
por todos que Possidônio passou a incentivá-lo a entrar para a política. O
velho fazendeiro resistiu a princípio, mas a lábia de Possidônio foi aos poucos
mexendo com a vaidade de Maneca, até que ele, finalmente, consentiu em ser
candidato a vereador. Faltava apenas escolher o partido.
A rivalidade
na política da Capela não fugia a regra da disputa no resto do país. Era Arena1
x Arena2, os dois, no entanto, aliados da Ditadura. Por fora, marcando posição
e fazendo oposição aos demais, o MDB. Seo Maneca é aceito pelo líder da Arena2
e passa a compor a chapa de vereadores da legenda. Possidônio é seu assessor
mais próximo e o responsável para “polir” a aspereza daquele homem agreste e
quase inculto. Dessa forma Possidônio se revela o primeiro marqueteiro político
de que se tem notícias.
Anunciada
a candidatura de Maneca Monteiro, seus adversários logo cuidaram de inventar
histórias que o desqualificavam. Faziam menção a sua bronquice. Numa delas,
contavam que, viajando em sua Rural pela BR, rumo a uma de suas fazendas no
norte de Minas, depois de ultrapassar vários caminhões com a frase Mantenha
Distância escrita na carroceria, Seo Maneca teria comentado com Chico Tripa,
seu motorista:
- Essa
Manteiga de Estância deve ser muito boa.
O
certo é que quanto mais seus opositores inventavam estórias depreciativas, mais
crescia a popularidade do candidato Maneca Monteiro. Perspicaz, Possidônio
observava tudo e explorava o que seu assessorado tinha de melhor. Enquanto os
políticos em geral são dissimulados, manipuladores e oportunistas, Possidônio
potencializava a autenticidade, sinceridade e a personalidade forte de seu
candidato.
Um dos
últimos comícios daquela campanha foi na Lagoa do Meio. O pátio da igreja estava
lotado de gente que vinha de todos os cantos. Seo Maneca foi um dos primeiros
candidatos anunciados pelo locutor Jorge Fonhem, para discursar. Depois de
cuspir a pimenta do reino que mastigava para tirar o pigarro, Maneca, no melhor
estilo Getúlio Vargas, começa sua oratória:
-
Trabalhadores de mãos calosas, das Barracas! – Pálido como um cadáver, temendo
a vaia do público, Possidônio grita lá do fundo do palanque:
- Não
é Barracas, é Lagoa do Meio
- É
tudo a mesma merda – dispara Maneca, em alto e bom som, sem conseguir conter o
embalo de seu discurso.
A
plateia foi ao delírio. Uns aplaudiram o candidato achando graça de seu ato
falho, outros por concordarem com sua assertiva. Enquanto isso, O Estrangeiro
suspirou aliviado e certo da vitória eleitoral.
No dia
15 de novembro de 1972, um domingo, além do vereador Meneca, os capelenses
elegeram Carlos Cabral o prefeito da cidade para um mandato que seria de apenas
2 anos. Porém, o fato mais marcante para mim, um garoto de 14 anos que ainda
não votava, aconteceu longe dali. No Rio de Janeiro, o Glorioso Botafogo de
Futebol e Regatas sapecava um 6 a 0 no Flamengo no dia de seu aniversário. Um
show de Jairzinho, Fischer e companhia com direito a gol de letra do Furacão da
Copa. Em comemoração, bebi toda a batida de limão que havia na Lanchonete de
Chico Arimatéia. Foi o meu primeiro porre oficial.
Pós
eleições, além do prefeito Cabral, o nome mais aplaudido e comentado na cidade
era o do “marqueteiro” Possidônio. Havia até quem defendesse sua candidatura a
prefeito dali a dois anos. Entretanto, menos de um ano após as eleições, O
Estrangeiro caiu em desgraça. A cabelereira Maria Rita, mais conhecida como
Ritinha Matraca, descobriu por intermédio de uma cliente de seu salão recém
chegada de São Paulo, que Possidônio era casado com uma portuguesa com quem
tinha dois filhos.
A notícia estourou feito um buscapé em festa de São Pedro. Não seria nada demais fosse Possidônio apenas o marqueteiro, fotógrafo, locutor e a fama de bom moço que ele ganhou dos capelenses. O grande problema era o anel de noivado no anelar direito de Débora, os proclames para o casamento anunciados no Voz da Capela, jornal de Correinha e a barriguinha da musa apontando o terceiro mês de gestação. Possidônio não esperou para assistir seu cadafalso. Sumiu como chegou: de repente. Nunca mais se ouviu falar no Estrangeiro. Os Rapazes do Básico fizeram uma festa.
Confesso que fiz uso do dicionário para saber o significado de cadafalso: Estrado alto onde se executavam os condenados à morte.
ResponderExcluirSerá que foi o fim da carreira do marqueteiro Possidônio?
Belo conto, Silvio!
Parabéns!
José Augusto da Silva
Muito obrigado, Zé Augusto, por acompanhar e incentivar esse trabalho.
ExcluirAbraços
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirMuito boa! Sinto-me dentro do cenário. Contemporâneo de Zé Euclides do Modeba e de Malaquias (Roberto Alves que cantava num conjunto de Estância?). Este teve um romance com Sheila até que ela fugiu com o palhaço do circo (rsrsrs)... Abraços!
ResponderExcluirQuerido Valfran, é uma alegria imensa reencontrá-lo aqui. Você que conhece bem esse período histórico. Recomendo a leitura de "Lourival na Capela", o primeiro conto publicado também aqui no blog.
ExcluirQuanto a história de Sheila, daria um belo conto (rsrsrs).
Um forte abraço, querido conterrâneo.