Depois
de esperar dois meses pelo dia da consulta e após três horas e meia assistindo ao
programa de Ana Maria Braga na TV da recepção da clínica, chegou a vez de Gentil
ser atendido. Não. Não era pelo SUS. Gentil era cliente de um famoso plano de
saúde. Marinete, sua esposa, administradora das finanças da família, de há
muito já vinha insistindo para que o marido se livrasse daquele pesado encargo
que comprometia o orçamento doméstico.
-
Pagar tão caro e ter um tratamento inferior ao do SUS é um desperdício –
reclamava Marinete. Mas a vaidade de Gentil, funcionário público,
subchefe-adjunto do setor de recursos humanos, impedia qualquer evolução nessa
discussão.
- Você está ficando doida, mulher? Já pensou
se um dia alguém da repartição me flagra na fila do SUS? Por essa vergonha eu
não passarei – respondia Gentil, dando o assunto por encerrado.
Filho
do meio de Dona Cecilia e Seo Euclides, Gentil era um menino prodígio. Sua mãe,
confiante na sua inteligência, investia todas as fichas em seu futuro. Disciplinado,
educado, cortês, ainda fazia jus ao nome que tinha: era a gentileza em pessoa.
Aluno aplicado estudou os primeiros anos na Escola Municipal Maria Alda Souza,
no povoado Lagoa do Meio, sob os ensinamentos da professora Marlene e o severo
acompanhamento de sua mãe. Seo Euclides morreu, Gentil ainda era criança, mal
conheceu o pai. Esse fato fez de sua mãe o esteio da família. Zelosa, rigorosa,
responsável, fazia o melhor doce de maracujá perruche do universo. Uma das
razões pela qual eu sempre pedia à minha mãe, permissão para brincar com os
meninos de Dona Cecília.
Tempos
mais tarde, ainda vi Gentil estudante do Básico. Depois soube que se formara
técnico em contabilidade e estava trabalhando no escritório da Usina Santa
Clara. Lá pela segunda metade da década de 80, os herdeiros da Usina, incapazes
de manter o império do velho Ariosvaldo Barreto, foram a falência. Gentil, ao
perceber o barco afundando, pegou o último trem de Valadares e seguiu viagem
rumo um emprego estável na burocracia do Estado.
Reencontrei
Gentil na recepção da clínica, rindo de uma piada do Louro José. Estávamos
ainda nos cumprimentando quando uma voz de aeroporto lhe toma a atenção:
- Senhor
Gentil, favor comparecer ao guichê número 7. - Depois de uma volta completa
naquele aquário onde ficam as atendentes, Gentil finalmente localiza o guichê
7. Senta-se diante de uma senhora de cabelos aloirados que aparentava uns 55
anos embora fizesse um cosmético esforço para parecer mais nova. Sara era o
nome que estava escrito no crachá. Depois de 10 minutos conversando com uma
amiga ao celular sobre o último paredão do Big Brother Brasil, Sara começa a
preencher a ficha de Gentil.
- Nome
completo?
-
Gentil José da Silva
-
Idade?
- 64
anos
- Data
de nascimento?
- 17
de janeiro de 1957
-
Local de nascimento?
-
Lagoa do Meio, Capela, Sergipe
-
Identidade, CPF e carteirinha do plano de saúde
- Aqui
estão
-
Profissão?
-
Servidor público
-
Contracheque? Comprovante de residência? CPF da mãe? Qual a cor do cavalo
branco de Napoleão? Cadê o Mário?
- Que
Ma... peraí, Sara. Isso aqui tá parecendo o questionário para a vacinação da
prefeitura – reage o paciente Gentil quase impaciente.
-
Agora o senhor senta ali e aguarda um pouco que o doutor Henrique Jekyll está
numa cirurgia e vai demorar um pouquinho. Ao ouvir o nome do médico eu, não sei
porque, me lembrei de um filme que tinha um médico que tinha duas
personalidades. Peguei Gentil pelo braço e ainda tentei convencê-lo a não ir àquela
consulta, mas ele reagiu meio que indignado:
- O
que você tem contra o Dr. Jekyll? Ele é o médico de todos lá da repartição. Um
ótimo médico. Aff! Também, vocês do PT implicam com tudo – reagiu Gentil se
afastando de mim com a cara emburrada.
Já
estava terminando o Globo Esporte quando finalmente Gentil foi chamado para a
consulta.
- Tire
a camisa – ordenou o doutor Jekyll, um senhor de cabelos grisalhos, aparentando
60 anos, que anotava alguma coisa na ficha do paciente anterior sem sequer
olhar para o Gentil.
- A
gravata também? – pergunta o barnabé visivelmente nervoso. O médico levantou a
cabeça e com cara de impaciência, altera a determinação.
-
Deixa pra lá, basta arregaçar a manga da camisa.
- A
esquerda ou à direita?
Nessa
altura quem parecia precisar de cuidados era o médico. Demonstrando impaciência
o doutor bate numa sineta em cima da mesa e, como mágica, entra a atendente,
uma jovem morena com cabelos loiros, numa justíssima saia branca, a blusa
igualmente branca, de tão apertada parecia que os seios iriam saltar pelo
espaço cedido por aqueles três botões próximo a gola providencialmente
desabotoados. Enquanto a moça dava água com açúcar ao médico, Gentil de olhos
arregalados ia se acalmando à medida que o Doutor ia voltando ao normal.
Reiniciada
a consulta o médico examina a pressão de Gentil. Faz cara de quem não acredita
no que vê e mede de novo. Balança a cabeça quando vê o resultado e tenta mais
uma vez. 16 por 10.
- O
senhor é hipertenso? – pergunta o médico.
- Eu
não sei – responde Gentil desconfiado.
- Na
sua família tem alguém hipertenso?
- Também
não sei não, doutor.
- O
senhor é alérgico a penicilina? E a ácido acetilsalicílico?
Gentil,
imaginando ter que responder mais um longo questionário, já estava para ter um
derrame, quando, movido por um surpreendente surto de coragem e uma oportuna
dose de irritação, deu um murro na mesa que o tensiômetro do médico saiu
voando. A mocinha atendente tentou de novo socorrer o médico, mas o Gentil
barrou:
- Fora
daqui! - a morena nervosa abriu mais um botão da blusa e saiu se abanando.
- Doutor,
não me faça mais nenhuma pergunta. Se eu soubesse respondê-las não teria vindo
ao médico. Aliás, se soubesse as respostas, eu seria o médico. Portanto, trate
de descobrir o que é que eu tenho e receite um remédio que me deixe bom logo.
O Dr.
Jekyll já ia voltando a sentar em sua cadeira quando Gentil se lembra de alertá-lo
sobre um outro dado da maior importância:
- Ah! E não quero saber dessa historinha de me proibir de beber e comer, hein? Pois na quarta tem festa de confraternização do pessoal da contabilidade, na quinta é a turma do RH e na sexta fui convidado pra tomar um uisquinho 12 anos na festa da diretoria.
Depois de tanta espera, o paciente Gentil incorporou a impaciência do Dr. Jekyll! Parece que o principal motivo foi a pressão!
ResponderExcluirÓtimo conto, Silvio!
José Augusto da Silva
Obrigado querido Zé Augusto, pelo acompanhamento e comentários.
ExcluirUm forte abraço
Muito bom, Silvio. Você está cada ve, melhor.
ResponderExcluirValeu, Marcus, pela leitura e pelo incentivo.
ExcluirSaudades do amigo
Neles de texto amigo. Muito bom. Grande abraço.
ResponderExcluirBeleza de texto.
ResponderExcluirQuerido Eurico, muito obrigado pelo apoio e estímulo
ExcluirAbração
Silvio, no final, Gentil não fez jus ao nome. Muito bom. Parabéns!!
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