12 março 2021

O Rio da Minha Aldeia

O riacho da Imbira, corre entre a Lagoa do Meio e as Barracas, separa os dois povoados, e deságua no Rio Japaratuba. Os minadouros que dão origem a sua nascente ficam no sopé de um pequeno platô localizado entre a Caninana e os Cantinhos. No cume fica o sitio onde, numa casinha de taipa com quatro cômodos, moravam, José Fagundes, Maria das Virgens e seus filhos. Fagundes era magarefe e auxiliava o marchante de porco Zé de Cajuza na tarefa de esfoliar os suínos, por isso era conhecido na comunidade pela alcunha de Zé de Pelar. Já Maria das Virgens, a Dona Maroca, além de cuidar dos filhos, era farinheira, lavadeira e ajudava Zé de Pelar no roçado de milho e mandioca.

Dona Maroca pariu quatorze filhos. Seis meninas e oito meninos. Destes, morreram cinco – duas meninas e três meninos – uns durante o parto, outros recém nascidos. Edite, a filha mais velha, fugiu com Zé Vaqueiro e mora numa fazenda no Gado Bravo em Dores. Jacira, a do meio, casou com um comboieiro e foi-se embora pro Cedro. Messias, Ariston e Verdiano, os três filhos mais velhos, foram a procura de emprego em São Paulo e viraram bóias-frias nos canaviais de Guariba. João, Das Dores, Carminha e Nelito, menores, continuavam em casa morando com os pais.

Naqueles tempos é como se houvesse um acordo tácito, uma regra não escrita, que valia para todas as famílias. Ao completar dezoito anos o filho homem tinha que arrumar um meio de vida. É como se esbarrasse ali o compromisso dos pais em sustentá-lo. As filhas, que geralmente casavam antes dessa idade, quando chegava aos dezoito ainda solteira, começavam a se preocupar em ficar no caritó e virar um peso para os pais.

Quando menino, eu gostava de frequentar a casa de Zé de Pelar e Dona Maroca. Era um dos poucos lugares que minha mãe me deixava ir sem sobrosso. Ela gostava dos modos de Maroca e admirava a criação que ela dava aos filhos. Além de amigo e colega de escola dos meninos, eu adorava as tangerinas, sapotis e jabuticabas que eles cultivavam no sítio. Sempre que ia ali perdia a noção do tempo e, invariavelmente, quando voltava pra casa depois do horário combinado, ganhava um carão e ou umas lapadas de bainha de facão, da minha mãe.

Do telheiro da casa de Zé de Pelar, uma vista deslumbrante nos fazia imaginar o paraíso. Daquele ponto era possível ver o imenso vale que surgia desde a encosta do planalto, esverdeado pela relva, árvores, plantas das mais variadas espécies e flores de todas as cores pintavam aquele cenário como um quadro de Monet. E no meio daquele espetáculo, corria majestoso como a prima donna de uma ópera de Bizet, o riacho da Imbira.  Em suas margens, taiobas, crotes, orquídeas selvagens, antúrios e onze horas, cresciam viçosas sob os carinhos das abelhas, beija-flores e borboletas. Altivas e imponentes como sentinelas que protegiam aquele santuário do inimigo, as goiabeiras, mangueiras, jaqueiras, mamoeiros, jenipapeiros, jameleiros, em cujos galhos os passarinhos faziam ninhos, nasciam os frutos que faziam a festa de Sanhaços, Canários, Sabiás, Cabeças, Bem-te-vis... e da molecada que se lambuzava e traquinava solta em meio aquela inesquecível paisagem.

O privilegiado espectador que, sentado no surrado banco de gameleira na varanda de Zé de Pelar, olhasse para além do vale, acima dele, avistaria as sete palmeiras da Lavagem, a chaminé do Engenho das Pedras e, lá longe, bem distante, dava prá ver a torre da Igreja Matriz da Capela. Ali, naquele cenário, nas companhias de João, Nelito, Carminha e Das Dores, brincando de boca-de-forno, cabra-cega, empinando papagaio, armando arapuca para pegar Nambu, tirando mel de arapuá ou ouvindo atento e medroso as histórias de Lobisomem, Caipora e Fogo Corredor, contadas pelo velho Zé de Pelar, eu vivi dias muito felizes da minha infância.  

Nas chuvas do inverno ou nas trovoadas, o riacho da Imbira virava rio. Se transformava completamente. Era como se incorporasse outra personalidade. De pacífico e inofensivo riacho, se convertia em um bravio mar de março. Suas correntezas se agigantavam, corriam célere e assustadoramente violentas, arrastando árvores, animais, gente e tudo que ousasse ficar à sua frente. Era como se a natureza lhe exigisse pressa para chegar ao Japaratuba.

Quando o verão trazia o sol de volta e com ele os tempos áridos, o riacho da Imbira voltava a ficar calmo, sereno, manso. Gentil como um cavalheiro, secava partes de seu leito para dar passagem aos trabalhadores que iam roçar, para os moradores irem à feira, para as crianças frequentarem a escola e para o gado mudar de pastagem.

Passados os anos, as matas foram sendo dizimadas pelo “progresso” que os fazendeiros levaram para aquelas paragens, cedendo lugar para as capineiras que alimentam o gado leiteiro e de corte.  Quando o tal do progresso chega no campo em forma de dinheiro, uma das primeiras vítimas é o meio ambiente. O riacho da Imbira já não provoca mais enxurradas. Os crotes, as taiobas e as orquídeas, já não estão mais lá, devorados que foram pelo capim-pangola e pelo Tordon a serviço da deusa ganância. Borboletas e Beija-Flores, voam a esmo tristes e entorpecidas por herbicidas. As abelhas que restaram já não mais fazem mel. Os Sanhaços, Canários, Sabiás, Cabeças, Bem-te-vis voaram todos para um lugar muito longe. Já não há mais goiabeiras, mangueiras, jaqueiras, jenipapeiros, jameleiros e mamoeiros. Nem o sitio de Zé de Pelar com suas jabuticabeiras e sapotizeiros, existe mais. Ali, da Caninana até onde a vista alcança o capim reina absoluto.

Do riacho da Imbira, depois de arrancarem seus cílios e encherem suas veias de agrotóxicos, sobrou apenas um fio d’água, como se fosse uma lágrima. Lágrima de dor e resistência.

O riacho da Imbira, o rio da minha infância, onde meu pai me ensinou a nadar, é o rio que corre em minha aldeia. O poeta português, Fernando Pessoa, me ensinou e toda a gente sabe que o riacho da Imbira é o rio da minha aldeia. E para onde ele vai. E de onde ele vem. E por isso, porque pertence a menos gente, é mais livre e maior o rio da minha aldeia. Pelo riacho da Imbira vai-se para o Mundo. Abenção, Fernando Pessoa.


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