O
riacho da Imbira, corre entre a Lagoa do Meio e as Barracas, separa os dois
povoados, e deságua no Rio Japaratuba. Os minadouros que dão origem a sua
nascente ficam no sopé de um pequeno platô localizado entre a Caninana e os Cantinhos.
No cume fica o sitio onde, numa casinha de taipa com quatro cômodos, moravam,
José Fagundes, Maria das Virgens e seus filhos. Fagundes era magarefe e
auxiliava o marchante de porco Zé de Cajuza na tarefa de esfoliar os suínos,
por isso era conhecido na comunidade pela alcunha de Zé de Pelar. Já Maria das
Virgens, a Dona Maroca, além de cuidar dos filhos, era farinheira, lavadeira e
ajudava Zé de Pelar no roçado de milho e mandioca.
Dona
Maroca pariu quatorze filhos. Seis meninas e oito meninos. Destes, morreram
cinco – duas meninas e três meninos – uns durante o parto, outros recém
nascidos. Edite, a filha mais velha, fugiu com Zé Vaqueiro e mora numa fazenda
no Gado Bravo em Dores. Jacira, a do meio, casou com um comboieiro e foi-se
embora pro Cedro. Messias, Ariston e Verdiano, os três filhos mais velhos,
foram a procura de emprego em São Paulo e viraram bóias-frias nos canaviais de
Guariba. João, Das Dores, Carminha e Nelito, menores, continuavam em casa
morando com os pais.
Naqueles
tempos é como se houvesse um acordo tácito, uma regra não escrita, que valia
para todas as famílias. Ao completar dezoito anos o filho homem tinha que
arrumar um meio de vida. É como se esbarrasse ali o compromisso dos pais em
sustentá-lo. As filhas, que geralmente casavam antes dessa idade, quando
chegava aos dezoito ainda solteira, começavam a se preocupar em ficar no caritó
e virar um peso para os pais.
Quando
menino, eu gostava de frequentar a casa de Zé de Pelar e Dona Maroca. Era um
dos poucos lugares que minha mãe me deixava ir sem sobrosso. Ela gostava dos
modos de Maroca e admirava a criação que ela dava aos filhos. Além de amigo e
colega de escola dos meninos, eu adorava as tangerinas, sapotis e jabuticabas
que eles cultivavam no sítio. Sempre que ia ali perdia a noção do tempo e, invariavelmente,
quando voltava pra casa depois do horário combinado, ganhava um carão e ou umas
lapadas de bainha de facão, da minha mãe.
Do telheiro
da casa de Zé de Pelar, uma vista deslumbrante nos fazia imaginar o paraíso. Daquele
ponto era possível ver o imenso vale que surgia desde a encosta do planalto,
esverdeado pela relva, árvores, plantas das mais variadas espécies e flores de
todas as cores pintavam aquele cenário como um quadro de Monet. E no meio
daquele espetáculo, corria majestoso como a prima donna de uma ópera de Bizet,
o riacho da Imbira. Em suas margens, taiobas,
crotes, orquídeas selvagens, antúrios e onze horas, cresciam viçosas sob os
carinhos das abelhas, beija-flores e borboletas. Altivas e imponentes como
sentinelas que protegiam aquele santuário do inimigo, as goiabeiras,
mangueiras, jaqueiras, mamoeiros, jenipapeiros, jameleiros, em cujos galhos os
passarinhos faziam ninhos, nasciam os frutos que faziam a festa de Sanhaços, Canários, Sabiás, Cabeças, Bem-te-vis... e da
molecada que se lambuzava e traquinava solta em meio aquela inesquecível
paisagem.
O privilegiado
espectador que, sentado no surrado banco de gameleira na varanda de Zé de
Pelar, olhasse para além do vale, acima dele, avistaria as sete palmeiras da
Lavagem, a chaminé do Engenho das Pedras e, lá longe, bem distante, dava prá
ver a torre da Igreja Matriz da Capela. Ali, naquele cenário, nas companhias de
João, Nelito, Carminha e Das Dores, brincando de boca-de-forno, cabra-cega,
empinando papagaio, armando arapuca para pegar Nambu, tirando mel de arapuá ou
ouvindo atento e medroso as histórias de Lobisomem, Caipora e Fogo Corredor,
contadas pelo velho Zé de Pelar, eu vivi dias muito felizes da minha infância.
Nas
chuvas do inverno ou nas trovoadas, o riacho da Imbira virava rio. Se
transformava completamente. Era como se incorporasse outra personalidade. De
pacífico e inofensivo riacho, se convertia em um bravio mar de março. Suas correntezas
se agigantavam, corriam célere e assustadoramente violentas, arrastando
árvores, animais, gente e tudo que ousasse ficar à sua frente. Era como se a
natureza lhe exigisse pressa para chegar ao Japaratuba.
Quando
o verão trazia o sol de volta e com ele os tempos áridos, o riacho da Imbira
voltava a ficar calmo, sereno, manso. Gentil como um cavalheiro, secava partes
de seu leito para dar passagem aos trabalhadores que iam roçar, para os
moradores irem à feira, para as crianças frequentarem a escola e para o gado
mudar de pastagem.
Passados
os anos, as matas foram sendo dizimadas pelo “progresso” que os fazendeiros
levaram para aquelas paragens, cedendo lugar para as capineiras que alimentam o
gado leiteiro e de corte. Quando o tal
do progresso chega no campo em forma de dinheiro, uma das primeiras vítimas é o
meio ambiente. O riacho da Imbira já não provoca mais enxurradas. Os crotes, as
taiobas e as orquídeas, já não estão mais lá, devorados que foram pelo
capim-pangola e pelo Tordon a serviço da deusa ganância. Borboletas e
Beija-Flores, voam a esmo tristes e entorpecidas por herbicidas. As abelhas que
restaram já não mais fazem mel. Os Sanhaços, Canários, Sabiás,
Cabeças, Bem-te-vis voaram todos para um lugar muito longe. Já não há mais goiabeiras,
mangueiras, jaqueiras, jenipapeiros, jameleiros e mamoeiros. Nem o sitio de Zé
de Pelar com suas jabuticabeiras e sapotizeiros, existe mais. Ali, da Caninana
até onde a vista alcança o capim reina absoluto.
Do
riacho da Imbira, depois de arrancarem seus cílios e encherem suas veias de
agrotóxicos, sobrou apenas um fio d’água, como se fosse uma lágrima. Lágrima de
dor e resistência.
O
riacho da Imbira, o rio da minha infância, onde meu pai me ensinou a nadar, é o
rio que corre em minha aldeia. O poeta português, Fernando Pessoa, me ensinou e
toda a gente sabe que o riacho da Imbira é o rio da minha aldeia. E para onde
ele vai. E de onde ele vem. E por isso, porque pertence a menos gente, é mais
livre e maior o rio da minha aldeia. Pelo riacho da Imbira vai-se para o Mundo.
Abenção, Fernando Pessoa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado por seu comentário!