19 março 2021

Paixão de Carnaval

A primeira vez que ouvi falar em Carnaval, eu era criança. Não lembro quantos anos tinha, mas lembro de meu pai sentado ao lado de um imenso rádio Philco, ouvindo e cantando junto com Claudionor Germano, uma linda música de Capiba: “os melhores dias de minha vida, eu passei contigo querida...”

Não sei por que, na Lagoa do Meio não tinha carnaval. Tinha todas as festas do mundo, menos carnaval. O mais parecido com a festa de Momo era quando, no sábado de aleluia, os rapazes, encapuzados, usando vestidos coloridos, máscaras de papelão, tocando chocalhos, cantando músicas e fazendo muito barulho, ganhavam as estradas do lugar assustando as crianças e divertindo os adultos por todo o povoado. Eram as Caretas.  

Os brincantes saiam em busca de donativos nas residências, entre os transeuntes e nos armazéns. O objetivo das Caretas era coletar gêneros alimentícios, bebida e dinheiro para realizar a tradicional brincadeira de malhação do Judas, na noite do Sábado de Aleluia, para a madrugada de Domingo de Páscoa, quando os católicos celebram a Ressurreição de Jesus Cristo.

Por isso estranhei o fato de meu pai estar cantando uma música que não fosse de Nélson Gonçalves, seu grande ídolo, ao que ele me explicou:

- Ah meu filho, é que o carnaval me traz boas lembranças dos bailes do Clube da Rhodia.  

Meu pai e minha mãe casaram-se muito jovens. Num tempo em que o povo da Lagoa do Meio só tinha como alternativas descer pra São Paulo ou subir pra São Pedro, eles foram tentar a sorte no Sul maravilha. Depois de alguns subempregos, meu pai virou operário da Rhodia Química Brasileira, uma multinacional francesa instalada em Santo André, no ABC paulista. Trabalhou lá 13 anos. Um belo dia, não aguentou mais a saudade, pediu as contas e voltou pra roça. Mas jamais esqueceu os bailes de carnaval do clube da Rhodia.

Meu pai gostava de contar que num desses bailes teria dançado com Hebe Camargo. Alguns, talvez por inveja, achavam que se tratava de uma gabolice. Minha mãe, enciumada, sorria de canto de boca e meneava a cabeça como se colocasse dúvida na aventura do marido. Eu, orgulhoso, achava o máximo a façanha do meu velho. Certamente, Hebe ainda jovem, iniciando a carreira, antes de se tornar celebridade, ganhava uns trocados animando festinhas e bailes como aqueles promovido pela Rhodia. Meu pai, assanhado que era, não perdeu a oportunidade de dar uma voltinha de dança com aquela moça que viria a ser a Rainha do Rádio e, posteriormente, também Rainha da TV brasileira.

Em 1968, aos 11 anos, deixei a roça para estudar na cidade. Em Capela, à medida em que ia crescendo, morria de inveja dos rapazes mais velhos que já tinham idade e dinheiro para frequentar o Rio Branco. Era a sede social do Rio Branco Sport Club, tradicional clube de futebol dos capelenses. No dia seguinte aos bailes, logo cedo eu corria para a praça da Matriz. Lá, em frente à igreja, tinha um pé de fícus e embaixo dele ficava um banco de cimento onde a rapaziada se reunia para resenhar a noite anterior no Rio Branco. Eu, menino intrometido, ficava ali papagaiando os caras, com os olhos vidrados de admiração e os ouvidos atentos para escutar as peripécias vividas e contadas por eles. Quem dançou com quem, quem levou taboca de quem, quem beijou, quem foi beijado, quem namorou, quem desnamorou. Eu viajava naquelas conversas e não via a hora de chegar minha vez de também ter minha própria história prá contar.

Estudante do Básico eu era colega de Suzete, a Suzy. Eu, bom de matemática. Ela, sofrível na matéria. Daí surge uma aproximação e o convite para ajudá-la nos estudos. Além de colegas viramos amigos. Eu estava na casa dos 15 pra 16 anos e já era um rapagão. Suzy era quatro anos mais velha que eu. Não parecia, nem eu sabia até então. Ela não perdia um baile no Rio Branco. Seu pai e seus irmãos eram sócios.

Vésperas do carnaval de 1973, na sexta-feira, depois dos estudos na casa de Suzy, ela me surpreende com um convite para o baile do sábado no Rio Branco Sport Club. Nem dormi direito. Às 5 da manhã daquele dia, prá mim, histórico, eu já estava de pé. Passei o dia todo contando as horas. Mal começou a noite e eu já estava de prontidão na Lanchonete de Chico que ficava ao lado da entrada do clube. Depois de beber meio litro de batida de limão - era o que o dinheiro dava para pagar – ouço os primeiros acordes da banda Unidos em Ritmo. O baile finalmente iria começar.

Entreguei o convite ao porteiro e, lívido, coração acelerado, subi a escadaria. Quando venci o último degrau e me deparei com o imenso salão, minhas pernas tremiam tanto que mal podiam me sustentar. Estava ali a fina flor da elite capelense. Os usineiros, os fazendeiros, os comerciantes, todos com suas senhoras. Os genros, as noras, os filhos e as filhas solteiras, os rapazes da praça da Matriz... e eu. Lá também estava Suzy. Quando a avistei saindo do outro lado do salão, caminhando em minha direção, vestindo um curtíssimo short jeans e uma blusa branca de botões, quase transparente, com um nó na frente deixando o umbigo à mostra, minhas pernas pararam de tremer. Eu simplesmente não as sentia mais.

Mal percebi quando ela me pegou pelas mãos me arrastando para o meio do salão onde saímos dançando... “Quanto riso, oh! Quanta alegria...” Minha cabeça era um turbilhão por onde passava mil coisas. Pensava no encontro com os rapazes no banco da Matriz no dia seguinte. Eu já era um deles. Lembrei do meu pai dançando com Hebe Camargo no clube da Rhodia e pensei baixinho, “quem sai aos seus não degenera”. Lá pelas tantas, a orquestra estanciana parece me chamar o feito a ordem: “vou beijar-te agora, não me leve a mal, hoje é carnaval”, o rosto dela próximo e frente ao meu, lábios abertos em um leve sorriso, pedia e merecia um beijo. Para mim, um beijo de verdade. Um beijo de cinema. Um beijo de Romeu em Julieta na Sacada dos Capuleto. Para ela: “que isso, colega, sinto muito, você não entendeu, foi só um selinho, coisa de amigo”.  


4 comentários:

  1. Santa batida de limão para animar o carnavalesco!

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    1. Animou rsrsrs
      Obrigado por deixar seu comentário.
      Abraços

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  2. Companheiro SS!, tirei a noite para atualizar as leituras, em especial os vossos contos, faltavam "o estrangeiro", "O rio da minha aldeia" e "paixão de carnaval". Na verdade, volto a minha Dores. Parabéns!, que venha o sexto.

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    1. Muito obrigado, companheiro. Sua interação é muito importante
      Um forte abraço

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