Filho
único de Núbia e Juca Machado, Pedro foi criado com todo o rigor e cuidados
para não ser um menino mole, mimoso, como costumam ser os filhos únicos. Seus
pais não o queriam mofino. Naquele lugar de vidas duras, longe da civilização e
das facilidades da modernidade, os moles não sobreviviam. Era preciso preparar
o menino para cumprir o seu destino de roceiro.
Porém,
o que mais chamava a atenção de todos no povoado era o fato de Núbia e Juca só
terem um filho.
- Ela
é maninha – diziam de Núbia.
- Ele
é roncoio – especulavam sobre Juca
Não era
comum os casais daquela comunidade terem poucos filhos. Quem menos tinha, contava
com mais de dez. Sem somar os que morriam no parto, por inanição ou quando
passava o vento mal. Como não havia médico, nem nenhum método científico que
pudesse diagnosticar as doenças, naquele sem fim só se morria de picada de cobra,
barriga d’água e de vento mal. As outras doenças todas eram curadas pela reza e
ou pelas ervas das benzedeiras. Os mais velhos diziam que a Jaracuçu, uma cobra
venenosa, era tão letal que quando picava alguém, saia debaixo para o corpo não
cair sem vida em cima dela. Barriga d’água matava mais lentamente. O doente ia
emagrecendo, sem forças, definhando e, em contrapartida, a barriga crescendo,
inchando até a morte. Descobriu-se alguns anos mais tarde que o que causava a barriga
d’água era a esquistossomose. Um estudo feito pelo Sesp – Serviço Especial de
Saúde Pública, hoje Funasa – mostrava que a Capela era rica em schistosoma
mansoni e nas lagoas da Lagoa do Meio ficavam os maiores criatórios do
protozoário de todo o planeta. Sempre soubemos que a Lagoa do Meio, um dia,
seria reconhecida pela sua grandeza.
Vento mal
era a doença que mais matava e aleijava. Um infarto fulminante, um derrame, um
ataque de epilepsia... era o vento mal.
-
Rapaz, Zeca Cego estava na bodega de Tonho jogando sinuca, de repente passou o
vento e ele ficou uns 10 minutos no chão se batendo. Deu sorte não ter morrido
– contava assustado, Dezinho Fofoca.
- Soube de Zé Vaqueiro? Tava fazendo a barba,
passou o vento e ele ficou com a boca torta.
Determinada
a fazer do filho alguém na vida, Núbia fazia ouvidos moucos para as fofocas e
especulações sobre sua família e tratava de botar o garoto na linha. Mas o
garoto era danado, traquino, briguento. Todo dia, ao mesmo tempo em que cumpria
com louvor seus deveres de estudante, ele aprontava alguma na escola. Mas as
peraltices de Pedro não passavam em branco. Quando chegava em casa a surra de
Núbia era certa.
Núbia
era uma mulher austera, de temperamento moderado, sem extremos, nem grandes
lágrimas, nem grandes risos. Casou-se muito cedo e o sofrer da vida ensinou-lhe
a andar pelos atalhos. Trabalhadeira, cuidava da casa com esmero, criava o
filho com devoção e ainda ajudava Juca no roçado. Era a consciência da casa. Juca,
seu marido, era comboieiro, passava dias em lombo de burros carregando açúcar e
farinha para as distantes feiras de Glória e de Propriá.
O indomável Pedro era o amigo que todos
queriam por perto. Ganhou o apelido de Papagaio pelos palavrões que dizia e porque
falava pelos cotovelos. Enquanto as outras crianças, tinham medo de subir para
tirar aquela manga madura no olho da mangueira por causa do marimbondo que resolvera
construir sua casa no galho próximo, Pedro Papagaio subia, tirava a manga e a
casa de marimbondo. Quando os meninos iam caçar Nambu na mata do Cipó, a
presença de Pedro era tão imprescindível quanto a baleadeira e o badoque.
Afinal, não fosse ele, quem iria espantar as cobras?
Pedro Papagaio
não era só força, músculos e boca suja. Ele também era cérebro. Muito
inteligente, na escola tirava sempre as melhores notas e, invariavelmente,
chegava ao final do ano com o primeiro lugar da turma. Quando Dona Virginia, a
professora do povoado, vislumbrando um imenso potencial intelectual no garoto,
sugeriu a Núbia e Juca que fizessem um esforço de mandar o menino para estudar
o ginásio na cidade, eles entraram num terrível dilema. Enquanto o coração
reagia em negação àquela proposta horrenda que apartava a cria de seus pais, o
cérebro os chamavam a razão. Num tempo em que as crianças daquele lugar
estudavam apenas o suficiente para assinar o nome, lê e escrever as cartas dos
parentes que viviam em São Paulo, aprender as quatro operações da aritmética
para fazer conta de tarefa e saber passar troco, a professora previu que Pedro
poderia furar aquela bolha e “ter um futuro”.
Um
futuro era tudo que Núbia almejava para o seu filho. Não queria para Pedro a
vida que estava destinada a todos daquele mundo: o trabalho braçal. Roçar
pastos, lavrar a terra, manejar o gado dos fazendeiros locais ou ser peão em
São Paulo. A própria Núbia e seu marido Juca conheciam bem o sofrimento que
eles e seus conterrâneos passaram quando um dia migraram para a cidade grande
do sul. Daí a educação rigorosa, espartana, como ela criava seu herdeiro. Por
isso que quando a professora Virginia levou a ideia de Pedro estudar na cidade,
Núbia, apesar de saber o quanto lhe doeria se afastar de seu amado menino,
pressentiu a oportunidade de ver o garoto vencer na vida e se livrar daquele
destino que, em princípio, parecia estar-lhe reservado.
Depois
de combinar com uma irmã que morava na Capela, Núbia decide por mandar seu
filho para estudar na cidade. Decisão difícil. Daquelas que só se fazem por
amor. Pedro tinha apenas 10 anos de idade. Muitas lágrimas na despedida e uma
nova vida que se abria para aquele corajoso garoto.
Os
primeiros dias de Pedro Papagaio na Capela foram solitários. De casa para o
Grupo Escolar Coelho e Campos e de lá pra casa. Não dera tempo de formar novos
amigos na escola nem na rua. Sua tia, com a responsabilidade de cuidar do filho
alheio, tratava o menino com rédea curta. Até porque, sabia ela, o Pedro era
danado demais. Como o tempo ajeita tudo, cinco semanas depois ele já jogava
pinhão, bola de marraia e brincava de manja com as crianças da rua do Quiço
onde morava. Daí para as peladas com bola de borracha na rua de piçarra em
frente à salgadeira de Gilberto, foi um pulo. Logo, logo Pedro caiu nas graças
dos colegas de pelada. Não porque fosse craque ou mesmo bom de bola, isso ele
não era, mas porque era brabo demais. Não rejeitava uma boa briga de socos.
Naqueles
tempos havia muita rivalidade entre as ruas. Os da Rua do Quiço não eram bem vindos
no Lá Vem Um e vice-versa. Isso valia para as outras zonas, Rua do Riacho, Beco
da Lama, Rua das Bananas, Baixinha, Gato Preto, Tamanduá, etc, etc. Quando os
times destas zonas se confrontavam, o que menos importava era o placar da
partida, mas quem ganhava na briga. No tapa. Todo jogo terminava em porrada e
nesse esporte Pedro Papagaio era craque e, só por isso, titular absoluto do
time da Rua do Quiço.
Apesar
de tudo, contraditoriamente, Pedro também era terno, generoso, respeitoso e
amigueiro. Os mais velhos o admiravam pela fineza, educação e civilidade como
eram tratados por ele. Os da sua idade o respeitavam por sua lealdade e pela
força de seu muque.
O
tempo passou, Pedro cresceu e se formou. Essa era a meta estabelecida por Núbia.
Fugir do eito, virar funcionário público ou do Banco do Brasil, garantir um bom
salário e a certeza de uma boa aposentadoria. Antes mesmo de se formar ele fez
concursos. Muitos concursos. Passou em quase todos. Passou num do Banco do
Brasil, foi chamado para trabalhar no Tocantins quando este ainda pertencia a Goiás.
Não aceitou. Era muito longe da Lagoa do Meio e da casa de Núbia. Também
mediante concurso, Pedro foi trabalhar no Banco do Estado, uma agência da capital.
Quando Pedro se formou em Direito, a Lagoa do Meio parou. Juca matou um garrote
de quinze arroubas, comprou cinquenta engradados de cerveja, fora as bebidas
quentes e deu uma festa para comemorar a vitória de Pedro sobre o destino.
- É o
primeiro doutor nascido na Lagoa do Meio – gabava-se Juca.
A
festa era para Pedro, mas a glória daquele momento era de Nubia. Ela não continha
a emoção e não parava de agradecer aos céus por ver atendidas suas preces e,
principalmente, seus esforços.
- Já
posso morrer em paz, realizei meu sonho – confidenciava Núbia às amigas.
Pedro
Papagaio foi bancário por 36 anos e se aposentou no ano passado. Depois de três casamentos e meia dúzia de
filhos e dois netos, Pedro já não vai mais a Lagoa do Meio.
- Não
tenho mais nada lá, só as lembranças do passado – diz Pedro nostálgico.
No
último Dia de Finados, ao visitar o túmulo dos meus pais no cemitério da
Trindade, encontrei lá o velho Pedro Papagaio. Fazia tempo que não o via, quase
não o reconheci. Cabelos brancos e ralos mal disfarçam a iminente calvície.
Rugas no rosto magro e o olhar cansado fixo na carneira onde repousa os restos
de Núbia, parece que o tempo começa a pesar para o querido amigo. Sem tirar os
olhos do jazigo, Pedro me surpreende com uma pergunta:
- Você
sente falta de sua mãe?
-
Muita. Não há um único dia que eu não me lembre dela e nenhuma noite que não
sonhe com seu sorriso e seus abraços – respondi.
O
valente Pedro Papagaio, o menino destemido e corajoso companheiro nas aventuras
da minha infância, me abraçou forte e desabou num convulsivo choro enquanto
balbuciava a dor dilacerante que lhe sangrava a alma causada pela ausência de Núbia.
Ali, naquele instante, dois homens idosos, cedem lugar a dois meninos que
surgem do passado e se reencontram na dor para celebrarem com lágrimas a
alegria de uma amizade que ficou guardada por longos anos num velho baú de
prata.
Ficamos
ali chorando até secar a última lágrima. Pedro suspirou, baixou mais uma vez o
rosto para a cova de sua mãe, depois suspendeu os olhos para os céus por cima
das torres da pequena capela no meio do cemitério, sentiu o sol forte arder-lhe
as vistas, encolheu as pálpebras e pareceu sonhar. Aquele céu sem nuvem, aquele
sol de verão. Solta outro suspiro. Quanta lembrança deve estar passando na tela
de sua memória. Mais um abraço na despedida e a promessa de nos vermos com mais
frequência depois que a pandemia passar.