Já era tarde da noite quando Antônio
fechou vagarosamente uma por uma as três portas da bodega, deu a volta no
balcão e entrou em casa. Já na sala, pendurou o molho de chaves no armador, colocou
o chapéu de baeta em cima da cômoda e, com passos cansados, atravessou o imenso
corredor até chegar ao terreiro dos fundos da casa. Levanta a cabeça, olha para
o céu sem nuvens e estrelado, dá um profundo suspiro, abre os botões da camisa
de mescla azul, deita numa rede estendida do pé direito ao braço da mangueira
do quintal, tira do bolso um amassado maço de cigarros Continental sem filtro,
acende um, dá uma longa tragada e voltando-se para Maria que debulhava fava
sentada num tamborete embaixo do telheiro, profetiza:
- Amanhã vai chover -. Maria sorri
baixinho com jeito de quem não acredita na profecia.
Antônio não completara 40 anos, mas
já tinha vivido muito. Rapazinho ainda se casou com Maria e se foi para São
Paulo. Lá foi ajudante de caminhão, servente de pedreiro e operário na indústria
química. Foi empregado da Rhodia, uma multinacional francesa instalada no ABC
paulista. Não passava pela cabeça de Antônio viver o resto da vida longe da sua
terra natal. Ele só queria ganhar algum dinheiro e voltar. Sonhava comprar um
pedacinho de terra, criar gado, ter sua própria roça, ser seu próprio patrão e
viver feliz com Maria.
Depois de quinze anos no Sul, juntou
as tralhas, a mulher, o filho recém-nascido e partiu de volta para sua aldeia.
Comprou uma pequena propriedade, algumas cabeças de gado, plantou uma roça e,
com as sobras, botou uma bodega. Era a Bodega de Tonho. Antônio era conhecido
de todos como Tonho, o filho de Cajuza.
A Bodega de Tonho ficava numa
encruzilhada. A frente da casa dava para a estrada que vinha do Tabocal e ia até
o Brejo. No oitão, tinha a estrada que ia para as Barracas. Única venda em toda
aquela região de mais de trinta povoados, era uma espécie de entreposto que
servia de apoio para comboieiros, carroceiros e viajantes.
Antônio vendia de um tudo em sua
bodega. Querosene e pavio para candeeiros, sal, açúcar, farinha, rapaduras, sardinhas
enlatadas, agulhas de coser, carretel de linha, cigarro de carteira, fumo de
rolo, cachaça e um tanto de outras coisas que eram de serventia para os
moradores daquele fim de mundo.
Os comboieiros que levavam açúcar do
Engenho das Pedras e do Proveito para as feiras de Glória e Propriá, toda
quarta feira fazia parada obrigatória na Bodega de Tonho. Apeavam os burros na
manga ao lado e abasteciam seus alforjes e caçuás com jabá, farinha e rapadura para
enfrentarem os longos dias de viagem. Naqueles tempos a jabá, tanto quanto o
bacalhau, ainda eram comidas de pobre. Os fardos ficavam ali entre a prateleira
dos de comer e o balcão das bebidas. De vez em quando um daqueles vaqueiros das
fazendas próximas, num intervalo da lida, chegava a galope, amarrava seu cavalo
no esteio do alpendre e adentrava a bodega para tomar uma limpa. Antônio pegava
sua peixeira especialmente amolada e cortava um naco de jabá e oferecia ao
cliente como tira-gosto.
Durante a semana os dias passavam
lentos, mas aos domingos tudo se transformava naquele lugar. Os moradores
daquelas comunidades eram todos trabalhadores rurais e pequenos produtores.
Trabalhavam de sol a sol e todos os dias. Apenas o domingo para o sagrado
descanso. Era o dia de encontrar os amigos, trocar ideias, espairecer numa boa
conversa e até mesmo tomar uma. A bodega de Antônio era o melhor lugar para
esse grande encontro.
Desde cedo as pessoas começavam a
chegar. Elas vinham de todo lugar. Logo a encruzilhada estava cheia de gente. Vicente
trazia uma cadeira, uma bacia com água, uma tesoura, uma máquina manual de
cortar cabelo e improvisava uma barbearia em baixo da frondosa jaqueira ao lado
da bodega. Homens e meninos faziam fila para um caprichado meio príncipe.
Sá Jovina, aos 80 anos ainda vinha andando
segurando seu cajado desde a Cruz do Martim para comprar fumo de rolo. Ela,
além de fumar cachimbo, mascava fumo. A negra Jovina nascera escrava numa
senzala lá para as bandas da Lavagem. Era a sábia da comunidade. As pessoas
faziam fila para que ela as benzesse. A rezadeira pegava três ramos de
vassourinha e ia benzendo uma a uma as pessoas, contra quebranto, mau olhado,
espinhela caída e outros males. De vez em quando trocava os ramos que,
carregados, ficavam murchos. Em geral as pessoas saiam dali mais leves e com as
forças renovadas. Era a fé transmitida pelas orações de Sá Jovina.
Lá do Murici vinham as filhas de
Pedro Cirino com um catálogo nas mãos para vender perfumes da avon. Com seus
vestidos rodados, três dedos abaixo dos joelhos, faziam suspirar os rapazes com
seus cabelos ensopados de glostora. Eles ficavam estrategicamente sentados no
barranco da estrada embaixo da pitombeira de seu Zuza para vê-las passar. Aos
assobios e aos galanteios dos garotos, as moças respondiam com um empinar de
queixo e um nem tunco de desprezo.
Beata de Mané Carreiro, Sá Joana,
Dona Soledade traziam cartas de seus filhos que viviam em São Paulo para Maria lê-las.
Era muito raro encontrar alguém em toda aquela região que soubesse ler ou
assinar o próprio nome. Lá do Brejo chegava Raul montado em sua égua mavú. Raul
tinha um rosto bexiguento, deformado por calombos esquisitos, mas compensava
sua feiura com uma prosa encantadora e engraçada. Todos paravam para ouvi-lo. Nelito
Borges dos Oiteiros, Zé de Juca da Cruz do Congo, Menês das Barracas, todos
desciam até a Lagoa do Meio para o domingo de lazer na bodega.
Maneca Monteiro da Imbira, um dos
poucos fazendeiros que apareciam no armazém, chamava a atenção de todos quando
chegava em sua charrete. Além de novidade, aquele veículo do velho fazendeiro, movido a força de um cavalo era, junto com o Jipe de seo Dário do Janeiro e da Rural
de Agnaldo do Papagaio, os únicos veículos de quatro rodas a transitar por
aquelas estradas esburacadas. Maneca mal cumprimentava os presentes, comprava um
galão de querosene e ia-se embora.
Lá pelas três da tarde, sob aplausos,
chegavam Durval de Laurentino e Jonas do Segredo. Eram violeiros e repentistas
que improvisavam versos em ritmo de galope alagoano e catado de viola. A partir
daí a farra não tinha hora para acabar.
Aquilo era cansativo e não rendia
muito dinheiro, mas Antônio não almejava riqueza. Se contentava apenas com o
suficiente para sustentar sua família com dignidade e alguma fartura, o que já
era muita coisa.
Já passava da meia noite quando Maria
balança a rede e acorda Antônio.
- Vamos prá cama que já está
chuviscando.
- Eu não falei que ia chover?
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