Alto,
forte, negro com traços indígena, cabelos ralos e finos, bigode amarelado pelo
sarro do pé duro, Carlos era considerado o melhor trabalhador braçal daquelas
redondezas desde o Tabocal até o Quem Dera. Tinha pouco apreço ao banho, daí
ganhou o apelido de Barrão.
Passo
ligeiro, espingarda de fecho no ombro, bagoga nos beiços, um bocó de encerado
atravessado no peito e dentro dele, num dos compartimentos uma mochila de pano
com farinha seca, duas bananas e uma tora de toucinho lhe serviriam de almoço.
No outro, uma caixa de espoleta, uma cabaça de pólvora, uma mancheia de
chumbinho, um pedaço de croá para servir de bucha, era o arsenal usado por Carlos
para caçar nambu, perdiz, rolinha e outros bichos. A caminho do roçado, corria
tudo por entre veredas dentro dos pastos, saltando riachos, pulando cercas e se
misturando ao gado.
Conhecido
de todos, Carlos Barrão andava nas vilas arrematando prendas em leilões,
dançando forró e bebendo cachaça limpa fabricada nos muitos alambiques da
região. Abria porteiras, cancelas e avançava sítios e fazendas adentro como se
fossem suas propriedades, falando e pilheriando com todos, homens, mulheres e
meninos, em troca recebia, sorrisos e aconchegos como boas-vindas.
Além
dessa rotina, apenas duas festas eram capazes de mobilizar Carlos Barrão e
todas as outras pessoas que ali viviam: a Festa de Nossa Senhora da
Purificação, padroeira da Capela, todo dia 02 de fevereiro e as Eleições. Sim,
as eleições eram um dia de festa para aquele povo.
Como
era Ditadura no Brasil, só havia eleições para alguns poucos cargos e, nas
cidades do interior, somente aconteciam de quatro em quatro anos. Quando chegava o dia 15 de novembro era
visível a excitação e a ansiedade que tomava conta de todos enquanto esperavam
os veículos da justiça eleitoral que vinham buscá-los para votar. Naquele canto
do mundo, era o único momento em que o Estado se fazia presente.
Muitos
sequer esperavam esse transporte. Logo cedo arreavam seus cavalos e se mandavam
para a cidade. Carlos era um dos primeiros a aparecer no centro do povoado, se
exibindo montado num cavalo castanho. Analfabeto, Barrão jamais frequentou uma
escola. Num tempo em que analfabeto não tinha o direito de votar, ele nunca
deixou de ir a uma Festa das Eleições.
Chegava
cedo na cidade, se dirigia à Rua do Riacho ali nos fundos do Grupo Novo onde
morava seu primo Lô. No amplo quintal amarrava o cavalo no mourão da cocheira,
colocava uma touceira de sempre verde pro animal remoer, desencilhava os arreios
e saia a pés pela cidade procurando conversa e gastando o tempo até a hora do
almoço. Os candidatos a prefeito para exibirem demonstração de força, matavam
bois e faziam mesas fartas para seus eleitores. Assim, além de fidelizar o
eleitor, monitorava seu voto. Valia tudo por um voto, mesmo que o eleitor, como
Carlos Barrão, só tivesse a panca de eleitor.
Pose
de eleitor, Barrão sabia fazer. Se aproximava do candidato, elogiava a campanha,
dava opinião sobre como conquistar o voto indeciso e com isso chamava a atenção
do politico que se interessava por ele prestando-lhe melhor atenção. E atenção
era tudo que Carlos queria. Mesmo na Lagoa do Meio, a maioria das pessoas
achava que ele realmente era eleitor. Aliás, até ele acreditava nisso.
Anos
mais tarde uma emenda constitucional foi aprovada pelo Congresso Nacional dando
direito aos analfabetos votarem. Quando soube disso Carlos não acreditou no
portador da notícia. Botou a certidão de nascimento no bolso, selou seu cavalo
e disparou pra Capela. Apeou o sendeiro na porta do cartório de Honorino que
lhe confirmou a boa nova. Naquela mesma hora entregou seu registro e saiu de lá
com o título na mão. Não se continha de emoção. Não precisava mais fazer de
conta. Agora era um eleitor de verdade e só pensava na eleição que se
aproximava.
Faltavam
nove dias para as eleições de 1986. Barrão chegou da roça, sentou num cocho que
servia de banco na varanda de seu chalé, acendeu um pacaio deu dois tragos e
caiu. Corre, acode, chama a rezadeira... não tinha mais jeito. Passou o vento
mal e o coitado nem teve tempo de gritar.
Carlos
morreu de um infarto fulminante a poucos dias de realizar seu maior sonho.
Votar. Ser um eleitor de verdade.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirMesmo sem ser um eleitor de verdade, Carlos Barrão foi um cidadão que compreendia a importância do voto popular.
ResponderExcluirJosé Augusto da Silva