Hoje,
diferente dos últimos dias chuvosos, amanheceu com um solzinho bem quentinho.
Como véio adora “esquentar sol”, eu resolvi dar uma caminhada e curtir o
calorzinho. Já disse aqui que não sou de caminhar pra lugar nenhum. Se for pra dá um recado, comprar um alfinete
ou uma queijada, eu vou até São Cristóvão a pé.
Mas caminhar no calçadão, ficar dando voltas na praça apenas como exercício,
eu não tenho paciência. Numa daquelas esteiras de academia então, nem pensar
que eu já fico irritado.
Foi
assim que eu resolvi unir o útil ao agradável. Aproveitei o sol e fui a pé até
a farmácia comprar um xarope. É que eu peguei um diabo de um resfriado que
virou gripe e com ela uma tosse seca que me atazana já há mais de oito dias.
- Vai
na farmácia comprar um xarope, hômi, pra ver se acaba com essa tosse enjoada –
me exige a patroa e eu empurrando com a barriga. É que toda vez que vou na farmácia
é uma confusão. O atendente me pede meu endereço, CPF, RG, telefone, tipo sanguíneo,
o time que torço, a cor do cavalo branco de Napoleão... uma entrevista de meia
hora. Eu, desconfiado que ele é um agente do bolsonarismo/morista a serviço da
CIA, passo os números todos trocados. Quando eles digitam dá erro e me
perguntam tudo de novo, aí eu me irrito – véio se irrita fácil, é uma
estratégia que quase sempre dá certo – mando eles socarem o remédio deles e vou-me
embora sem nada. Mas não entrego a rapadura pros ianques. Aqui procês, seus fí
duma ronca e fuça.
Mas
tudo bem. Dessa vez eu vou à farmácia comprar meu xarope. Não por causa da
tosse, mas pra pegar aquele solzinho na lata. Assim que saio do meu prédio
encontro uma mocinha puxando um cachorrinho pequinês na calçada. Dou bom dia, o
cachorro solta um suave latido e a moça ignora solenemente. Deve ser surda a
bichinha, penso eu. Ainda cogitei cumprimenta-la fazendo a linguagem dos
sinais, mas logo me desfiz da ideia. Vai que eu erro no movimento dos dedos e
dá merda. Deixa prá lá. Segui meu caminho de mais ou menos um quilômetro até a
farmácia.
Durante
o percurso lembrei da minha mãe. Quando eu era moleque ela me mandava na
farmácia de Tonho Arimatéia comprar xarope. Não é coincidência, é que lá em casa
nós sempre tivemos esses problemas de alergia, rinite, bronquite e o diabo a
quatro nas gargantas. Xarope e cuscuz nunca faltaram lá em casa. Mas ela dizia “vá
por essa calçada e volte por ela mesma. Tenha educação e cumprimente todo mundo
que encontrar dando bom dia. Se souber que não foi educado com alguém você vai
ver o que é bom prá tosse”. Isso sempre me intrigou. Se minha mãe sabia o
remédio bom prá minha tosse, porque diabos ela insistia no tal xarope da
farmácia de Tonho?
Voltando
pra minha caminhada. De casa pra farmácia cruzei com nove pessoas na calçada.
Contei nos dedos das mãos. Dei bom dia a todas elas. Oito jovens sequer olharam
na minha cara. Eu já estava considerando a possibilidade de ser um fantasma.
Será que eu tinha morrido à noite enquanto dormia? E se agora eu estiver apenas
resistindo ao inexorável me fazendo de vivo como o marido da Demi Moore naquele
filme? Claro, como explicar eu indo todo feliz à farmácia comprar uma porra dum
xarope? Para aumentar minha dúvida, vem uma senhora em minha direção. Ela é a
nona. Mais ou menos da minha idade, lhe dou bom dia e ela responde. E responde com
um sorriso no rosto como se tivesse reconhecido em mim um de sua espécie. A
essa altura tenho apenas uma dúvida: fantasma toma xarope?
O problema é ser um zumbi existencial imerso na ignorância empoderada, pois os fantasmas dão bom dia e se divertem.
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