Lula é o grande vulto da história republicana. Goste-se ou não dele, sua saga é heroica. A comparação com a figura que lhe vem em seguida, Getúlio Vargas, mostra que sua trajetória é excepcional e exponencial.
Estancieiro nos pampas, Vargas era
um quadro da elite desde 1909, quando virou deputado. Depois governador e
ministro, deu o golpe de 1930. Foi um caudilho de republiqueta por 15 anos:
demagogo, oportunista, sanguinário.
Lula comeu pão pela primeira vez com
sete anos, ao chegar a São Paulo de pau-de-arara. O pão que o diabo amassou; engraxate,
fumava guimbas catadas na rua e usava o banheiro da freguesia de uma birosca.
Não tinha onde cair morto.
A mística do Vargas Pai dos Pobres
vem de seus três anos como presidente eleito. Os trabalhadores melhoraram de vida
no período, mas as dádivas lhe foram concedidas por uma casta de pelegos e
políticos venais que o chefe populista cevava e cooptava.
Já Lula tece sua trama com o povo
pobre desde a ditadura. Liderou greves, foi preso e perdeu eleições, mas
pelejou sempre pela organização autônoma dos espoliados. Relembre-se: o PT foi
criado para enfrentar o patronato e os burocratas dos partidos comunistas, a
começar pelo brasileiro.
Militares abutres e corvos civis
avançaram na jugular de Vargas em 1954. Ele se suicidou e o golpe gorou. Dez
anos depois veio a quartelada que arrochou os trabalhadores por décadas.
Açulados por Judas-Temer, burgueses,
juízes, parlamentares, jornalistas e prelados cravaram os dentes na carótida de
Lula em 2017. Provas forjadas, chicanas, mentiras, não faltaram caninos à
matilha. Aí Lula teve sua hora alta.
Ele não fugiu. Podia ter se
refugiado no exterior porque era claro como mil sóis que seria trucidado.
Preferiu, disse, ser "enterrado vivo" a permitir que lhe imputassem
crimes que não cometera. Teve a fibra de Mandela.
Não se cogitava que um dia lhe
fizessem justiça. Porque, com covardia infame, Barroso, Carmen, Fachin, Fux,
Moraes e Weber aceitaram o cabresto que lhes foi posto pelo comandante do
Exército, e cassaram o direito de Lula disputar a eleição de 2018.
A cúpula da Justiça reafirmou seu
caráter de classe ao decretar que lugar de líder trabalhador é na cadeia. Mais que
depressa, a direita dita civilizada aceitou, como uma mula manca, que a extrema
direita a cavalgasse. Sem o petista na liça, Bolsonaro venceu.
Acharam que Lula purgaria 12 anos de
pena e sairia destroçado do cárcere. Ou se desmoralizaria num acordo para ser solto.
Mas deu-se o inconcebível, o Supremo liberou Lula. Até para uma Justiça pangaré
como a nossa, foi do jamais visto.
A justificativa das iminências teve
um toque grotesco: levaram três anos para descobrir que Atibaia e o Guarujá —onde
estavam o sítio e o tríplex dos quais não havia prova que fosse dono— não
ficavam em Curitiba, onde corria a Lava Jato, mas em São Paulo.
Lula não deixou a solitária por obra
de uma irrefreável campanha de massas. Só meia dúzia de gatos pingados lhe gritava
bom dia e boa noite. Contudo, o Supremo abriu sua cela com uma canetada. A boa
pergunta é: por quê?
Porque Bolsonaro escoiceava a república,
trotava sobre os cadáveres da peste e zurrava que, dane-se a democracia, seria
ditador. O Supremo, que come e dorme com os maiorais, imaginou a saída para a
crise inexorável; deixar Lula livre para promover a boa e velha conciliação.
O herói avisou que, mesmo na idade
de fazer bilu-bilu nos netos, inflamaria seu povo. Descascaria o abacaxi da
campanha e enfrentaria o pepino do governo. Agora os iluminados dizem que ele
ganhou graças ao centro, ao TSE e à valorosa elite. Então tá.
Essa cantilena é de quem quer
tutelá-lo. Foi Lula quem reergueu o centro defunto. Foi ele que afrontou o
Estado aparelhado pela gangue bolsonarista. Ao votar maciçamente nele, como
disse o sociólogo Celso Rocha de Barros na sua última coluna, "os pobres
salvaram a democracia".
A história não chegou ao fim. É o
que diz o coro em "Édipo Rei", a tragédia de Sófocles, ao ver o herói
que salvou Tebas ser moído pelo destino: "Não se diga que um homem é feliz
até ele estar morto".
Lula também falou de morte no
discurso depois de eleito. De improviso, disse: "O povo é a minha causa, e
combater a miséria é a razão pela qual vou viver até o fim da minha vida".
Como as tarefas à frente são
hercúleas, Lula pode ter um fim trágico. Mas não se pode esquecer que, aconteça
o que acontecer, o herói da causa popular livrou Tebas da tirania.
Texto de Mario Sergio Conti - jornalista, autor de Notícias do Planalto, publicado no jornal Folha de São Paulo em 04/11/2022.
Excelente análise da história contemporânea brasileira.
ResponderExcluirValeu, Zé. Obrigado pela visita e pela leitura
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